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Capítulo I - Morfeu

           Era um dia ensolarado, quase mágico. Iranta observava sua esposa e filha sorrindo e brincando nos jardins da casa. Elas corriam até ele com o rosto iluminado, a vida pulsando em cada gesto. Ao redor, outras famílias compartilhavam aquela felicidade: cachorros saltavam atrás de bolinhas e pedaços de madeira, crianças empinavam pipas sob um céu absurdamente azul. Tudo parecia suspenso num momento de pura paz — até que, de repente, o dia começou a empalidecer. O calor desapareceu. Um frio seco envolveu o ambiente, apertando a garganta de Iranta.

             

            Uma sombra grotesca escurece os rostos que, até a pouco, estavam tão sorridentes. Até o próprio sol perecia encolher, se acanhar deprimindo o dia. Próximo dali uma figura bizarra emergiu como se brotasse das profundezas dos nossos medos, de nossos piores pesadelos. Caminhava de forma errática vestindo trapos que lembravam roupas nobres da Idade Média, agora puídas, manchadas, como arrancadas de um cadáver em seu túmulo sombrio. Seu rosto carrega uma expressão de pura insanidade. E à medida que aquele espectro de ser humano tocava as pessoas a loucura parecia transbordar pelos olhos e bocas. O que começava no olhar perdido se espalhava pelo corpo mergulhando-os em profundo descontrole e desespero. Um a um os corpos desabavam, sem vida e multiplicando-se a cada passo da criatura. Foi assim que o silencio se espalhou como um incêndio no mato seco de um dia de verão.

              Iranta assistia, paralisado, como se o próprio ar ao seu redor tivesse congelado. Os sons, os movimentos, tudo parecia distante e irreal. E então, sem qualquer aviso, sua chefe surgiu, colada a seu rosto — os olhos cortantes, a voz um sussurro gélido de reprovação:

 

              - Você não vai fazer nada? Cumpra seu dever. Vá e enfrente-o.

 

              O mundo girava em espiral, cada vez mais rápido. As imagens embaralhadas davam lugar a rostos conhecidos: seus colegas de trabalho, todos vestidos com os uniformes negros da agência, formavam um círculo ao redor de Iranta. Sorrisos cruéis, olhos acusadores:

 

              - Olha como ele está perdido.

              - Você é fraco, ridículo e covarde...

              - Onde você estava? Fugiu?

 

              Iranta hesita, começa a se debater em um esforço para sair correndo, mas seus pés pareciam estar fundidos ao solo, uma terra vermelha e árida. Cada nova tentativa só servia para demonstrar a inutilidade de seu esforço, na verdade parecia que ele afundava mais como areia movediça. Seus instintos gritavam para proteger sua família e ignorar a ordem de sua chefe. Iranta se sentia como que recebe uma sentença final e implacável.

 

              Um grito corta o ambiente. Iranta sente seu peito apertado diante do maior medo de sua vida. Seus olhos cruzam com os de sua esposa, o olhar dilacerado pela dor e desespero. Em meio ao silêncio brutal, ele leu seus lábios tremerem numa pergunta que o atravessou como uma lâmina incandescente cortando e queimando seu corpo:

 

              - Onde você estava?

 

              Ele é obrigado a acompanhar a vida abandonando lentamente escorregando pelo rosto pálido. Só havia uma tênue luz onde ele podia ver aquele homem junto as pessoas que ele mais amava no mundo, agora caídos, inertes, sem a alegria que antes o enchia de esperança.

 

              Em desespero Iranta correu, seus passos pareciam ecoar no vazio que a morte deixou a seu redor. Aquele homem estava indiferente a tudo e nem mesmo a proximidade de Iranta o fez se alterar. Tomado por uma fúria de quem não tem nada a perder, Iranta ataca, mas o homem não reage é como se seus golpes e até sua presença fosse insignificante.

 

              Ajoelhado e sem forçar para continuar, Iranta suplicou:

 

              - Por favor... deixe-me ir com eles!

 

              O homem o fitou, e um sorriso lento e perverso distorceu seus lábios. Sua gargalhada mórbida reverberou pelo ar enquanto ele balançava a cabeça negando de forma cruel o pedido de Iranta.

 

              Uma nova explosão de raiva vez Iranta se levantar e se lançar sobre o pescoço magro e frio daquele monstro infernal. Porém, um arrepio percorreu todo seu corpo quando o homem virou vagarosamente o rosto em sua direção. Iranta sentiu como se seu coração apavorado se negasse a próxima batida, quando ele reconhece seu rosto naquele semblante deformado a quem ele despeja seu ódio, aquela troca de olhares que se refletem em um jogo de espelhos infinitos. Com um empurrão o homem o lançou longe e neste momento ele abre seus olhos acordando do sonho ruim para mergulhar no pesadelo real de sua vida.

 

              Ainda confuso, Iranta escorregou do sofá da sua sala, cercado por roupas espalhadas lixo acumulado e o cenário geral de abandono. O seu sistema de informação e entretenimento 2.0 projetava um filme antigo. O assistente SIE 2.0 informa de uma ligação:

 

              - O senhor quer que eu atenda à chamada e projete?

              - Não, não, vou atender no VCom. Resmgou Iranta, tentando recuperar a coordenação e a clareza de seus pensamentos

 

              Sonolento, tropeçando em garrafas e papeis espalhados, Iranta caminhou até o dispositivo, colocando em seu ouvido para atender a chamada sem acionar o modo visual, apenas áudio.

 

              - Chefe! Eldora sussurra do outro lado da chamada.

              - Por que você está falando tão baixo? Por que está falando tão baixo? Resmungou ele, a cabeça latejando como se estivesse preso numa aula de bateria para cem iniciantes.

              - Iranta está todo mundo por aqui, temos informações novas e pelo que analisei acho que ele vacilou e podemos determinar sua localização. Só falta você e a Dona do Mundo já passou por nossa baia umas 3 vezes, sem falar nada...

              - Ops, diga que estou no banheiro com diarreia se ela perguntar. Estou a caminho.         

 

              Apesar do desleixo em que sua vida se resumira, Iranta ainda conservava certo porte atlético. Um afro-americano de 1,90m, cabelos negros com fios brancos surgindo de forma desalinhada e uma barba malfeita moldavam o retrato perfeito de um homem que apenas sobrevivia, movido por um desejo incessante de vingança.

 

              - Vamos lá, “Antigos Espíritos do Mau Transformem esta forma decadente em Mumm-Ra Iranta”. Gemidos, resmungos e algumas espreguiçadas depois...

              – Nem os espíritos do mau querem saber de mim. Acho que ainda tenho um pouco de luz em algum lugar. Hora de ir.

              - O senhor tem chamadas não retornadas, informou o assistente. Sua mãe o procurou três vezes e Sophia fez outra chama ontem as 20h33. Devo retornar as chamadas?

              - Não! Ignore, por enquanto...

 

              Iranta balançou levemente a cabeça em sinal de arrependimento e, em seguida, deu uma nova ordem a SIE.

 

              - Responda a minha mãe com uma mensagem de texto: diga que estou em missão e assim que tiver mais tempo eu ligo para ela, diga que eu a amo e sinto saudades.

 

              - Mensagem criada. O senhor quer revisar antes de enviar?

              - Não pode enviar.

              - E quanto a amiga de sua da senhora?

              - IA idiota.

 

              A muitos meses Iranta removeu as configurações de personalização de sua SIE, deixando o mais impessoal possível.

 

              - Não entendi seu comando, pode reformular, por favor?

              - SIE quero a projeção das notícias e a previsão do clima.

 

              Iranta caminha lentamente, lançando um olhar breve para a porta do que um dia fora o quarto do casal feliz e, em seguida, para a porta do quarto de sua filha, ambas permanecem fechadas desde a tragédia provocada pela tecnologia de Shon. Ele observa projeção exibindo as notícias solicitadas e as informações sobre as condições do tempo. Em meio a uma reportagem sobre o aumento de crimes de clonagem ilegal de seres humanos, Iranta segue para a agência sem ao menos desligar sua projeção.

 

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